Normas gerais e normas específicas no âmbito das licitações e contratos: uma reflexão sobre o artigo 8º da Lei 14.133/2021 e a autonomia dos entes federados

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A Constituição da República estabelece a competência da União para legislar sobre normas gerais de Licitações e Contratos, cabendo, em regra, aos demais entes federados a atividade legiferante no que diz respeito à normatização específica, de acordo com suas especificidades. Esse é o entendimento que se extrai das normas contidas no art. 22, XXVII da Constituição da República e do entendimento do Supremo Tribunal Federal[1].

Diante de tais normas torna-se indispensável, na análise da legislação vigente, identificar quais são gerais, assim aplicáveis a todos os entes federados, e quais são específicas, devendo ser observadas apenas pela entidade as criou.

Tendo-se em vista o adento da Lei 14.133 de 1º de abril de 2021, que promoveu alterações significativas no regime jurídico das contratações públicas no contexto nacional, chama a atenção, dentre muitas, a disposição contida no art. 8º da citada lei, que assim determina:

Art. 8º A licitação será conduzida por agente de contratação, pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.

Note-se que o dispositivo transcrito abriga norma referente ao impulso e à condução do processo licitatório, o que deve ser realizado pelo agente de contratação, servidor público efetivo dos quadros permanentes do ente federado, o que envolve, sobremaneira, matéria afeta à organização político-administrativa.

Diante disso, o questionamento que se faz é o seguinte: a disposição contida no art. 8º da Lei 14.133/2021 é norma geral, portanto aplicável a todos os entes federados, ou norma específica de observância obrigatória apenas pela União?

Para melhor satisfazer a indagação trazida à reflexão é pertinente analisar a estrutura da composição normativa. Ou seja, para além da condução do processo licitatório pelo denominado agente de contratação, quais os outros aspectos jurídicos estão dispostos na norma em questão?

Consoante já explicitado, a norma se relaciona com a organização político-administrativa do ente federado e envolve nitidamente a questão afeta à existência de servidores efetivos que integrem os quadros permanentes da Administração Pública, que sejam minimamente capacitados ou capacitáveis e estejam disponíveis para o exercício da atribuição legal.

De suma necessidade rememorar que a estrutura político-administrativa de cada ente federado é afeta a sua própria autonomia organizacional, consoante garantido pelo art. 18[2] da Constituição da República. Diante disso, e da composição legal do citado art. 8º, é possível afastar a generalidade de sua disposição, sob pena de ingerência da União na autônima das demais unidades federadas. 

Para além da norma posta no art. 8º da Lei 14.133/2021 e da evidente autonomia político administrativa, merece especial atenção a realidade, sobretudo, dos Municípios menores que existem aos montes em nossa composição federativa. O aparato de tais entidades, por muitas vezes, é mais carente do ponto de vista orçamentário, de pessoal e de um assessoramento jurídico de qualidade, dentre outros pontos. Assim a implementação das normas gerais de licitação contidas na nova lei de regência, bem como a implementação de regulamentação de matérias específicas se torna um desafia ainda maior para tais entes.

Desse modo, a reflexão posta em destaque é mais acentuada do que pode parecer. Além do que já foi exposto, outro ponto crítico no presente debate fica evidente a partir do seguinte questionamento: caso os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não regulamentem a norma específica, o art. 8º da Lei 14.133/2021 deve ser observado ou não?

É certo que a Administração Pública se submete à expressa legalidade, ou seja, apenas pode fazer o que a lei autoriza ou determina. Essa é a norma que se extrai do art. 37, caput, da Constituição da República.

Desse modo, admitir que os demais entes federados, para além da União, não sigam a exigência contida no art. 8º da Lei 14.133/2021 e também não criem normatizações próprias é inserir a atividade administrativa de impulso e condução dos processos licitatórios em um limbo sem uma norma condutora, o que pode ser extremamente prejudicial à movimentação da máquina pública, além de inconstitucional.

Portanto, razoável compreender que a norma contida no art. 8º da Lei 14.133/2021 é específica e de aplicação e observância apenas pela União, desde que os demais entes federados regulamentem a matéria em sua estrutura interna, sob pena de terem que seguir o comando disposto no citado artigo, ou estarem fadados não apenas à ilegalidade, mas também à desestrutura organizacional do sistema de licitações e contratações públicas em sua estrutura organizacional.


[1] DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO E CONTRATAÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MUNICIPAL. LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE BRUMADINHO-MG. VEDAÇÃO DE CONTRATAÇÃO COM O MUNICÍPIO DE PARENTES DO PREFEITO, VICE-PREFEITO, VEREADORES E OCUPANTES DE CARGOS EM COMISSÃO. CONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA SUPLEMENTAR DOS MUNICÍPIOS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. A Constituição outorga à União a competência para editar normas gerais sobre licitação (art. 22, XXVII) e permite, portanto, que Estados e Municípios legislem para complementar as normas gerais e adaptá-las às suas realidades. O Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de que as normas locais sobre licitação devem observar o art. 37, XXI da Constituição, assegurando ‘a igualdade de condições de todos os concorrentes’. Precedentes. Dentro da permissão constitucional para legislar sobre normas específicas em matéria de licitação, é de se louvar a iniciativa do Município de Brumadinho-MG de tratar, em sua Lei Orgânica, de tema dos mais relevantes em nossa pólis, que é a moralidade administrativa, princípio-guia de toda a atividade estatal, nos termos do art. 37, caput da Constituição Federal. […] (RE 423560, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, DJe 19.06.2012).

[2]   Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.