A dispensa de licitação para manutenção de veículos automotores com fornecimento de peças e os cuidados para não ocorrer o fracionamento indevido da despesa

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Dispensa de licitação para manutenção de veículos automotores
Dispensa de licitação para manutenção de veículos automotores

Foi perceptível a euforia, especialmente nos Municípios, com a alteração dos valores para dispensa de licitação previstos nos incisos I e II do art. 75 da Lei 14.133/2021.

Ao mesmo tempo é preciso especial cuidado para que os agentes públicos e os ordenadores de despesa não cometam o temido “fracionamento indevido”.

Se por um lado a Nova Lei de Licitações permite a realização de contratações diretas, mediante dispensa, por valores que, a depender do objeto, ultrapassam a casa dos 100 mil reais, por outro, houve majoração das penas nos casos de contratação direta indevida que agora podem chegar a 8 anos de reclusão (Art. 337-E do Código Penal).

TJSP condenou um servidor

Recentemente, inclusive, o Tribunal de Justiça de São Paulo condenou um servidor público municipal a 5 anos de reclusão em virtude da realização de dispensas indevidas que se deram por meio de fracionamento[1].

Em linguagem simples o fracionamento consiste na utilização de várias dispensas de licitação em razão do valor ao longo do exercício financeiro que, quando somados, obrigariam a deflagração do processo licitatório.

Em relação às dispensas para obras e aquisições ou serviços comuns não se percebem maiores riscos por parte do gestor, até porque a regra do § 1º do art. 75 da Lei 14.133/2021 deixa clara a vedação do fracionamento.

Regra §7º do art. 75

A mesma clareza, no entanto, não se vê quando se faz a análise da regra o § 7º do art. 75 juntamente com o § 1º do mesmo artigo.

O art. 75, I prevê que a Administração poderá dispensar a realização de processo licitatório para serviços de manutenção de veículos automotores até o limite de R$ 114.416,65 (cento e quatorze mil quatrocentos e dezesseis reais e sessenta e cinco centavos).

Já o § 7º do art. 75 não considera fracionamento as dispensas de licitação para manutenção de veículos da Administração, incluído o fornecimento de peças, desde que estas não superem, individualmente, o valor de R$ 9.153,34 (nove mil cento e cinquenta e três reis e trinta e quatro centavos)[2].

Assim, a dúvida seria saber se é possível a realização de várias dispensas de licitação para manutenção de veículos ao longo do exercício até o limite de R$ 9.153,34 ainda que o montante gasto supere o limite do art. 75, I da Lei 14.133/2021.

Temos que a resposta é positiva desde que sejam observadas algumas cautelas

Em primeiro lugar é importante esclarecer que a dispensa de licitação é exceção, devendo haver o correto planejamento das contratações, inclusive das contratações diretas em que se dispense a deflagração do processo competitivo.

Vemos que no caso do § 7º do art. 75 houve opção expressa do legislador em afastar a hipótese de fracionamento quando cada procedimento de dispensa não extrapolar o valor de R$ 9.153,54.

Desse modo, seria possível a realização de vários procedimentos de dispensa de licitação ao longo do ano, desde que o somatório não exceda o limite do art. 75, I da Lei 14.133/2021, excluídas, para fins deste limite, as dispensas que, individualmente, não ultrapassarem o valor de R$ 9.153,54.

Este entendimento, inclusive, tem amparo jurisprudencial[3] e doutrinário, vejamos:

A literalidade do § 7º do art. 75 da Lei n. 14.133/2021 não abre muitos espaços para interpretação restritiva, porque o legislador foi bem claro e, muito embora se possa discorda da opção legislativa, não se encontra inconstitucionalidade direta no dispositivo. A justificativa para a dispensa de licitação e para o fracionamento dos contratos é a imprevisibilidade e a dificuldade para realizar a licitação que tenha por objeto serviços de manutenção de veículos. Durante as décadas da Lei n. 8.666/1993, vem licitando tais objetos, bem como serviços de manutenção em geral, não restritos a veículos automotores, desenvolvimento modelos de contratos que lhe são incompatíveis. Porém, o legislador, pressupõe-se, entendeu que tais modelos de contratos específicos para serviços de manutenção de veículos automotores causam prejuízos para a Administração, que seria melhor que ela contratasse por dispensa de licitação e que as regras que vedam o parcelamento ou fracionamento dos contratos não deveriam ser aplicadas desde que para contratos limitados a R$ 8.000,00 (NIEBHUR, 2022, p. 261-262).

Tem sido bastante comum, e aqui concordamos com a crítica do autor, a utilização dos registros de preços, geralmente a partir de licitações na modalidade pregão, em que se licita o valor da hora de mão-de-obra para serviços de manutenção de veículos e também os registros de preços para contratações de peças de reposição da frota dos órgãos públicos.

Esses tipos de contratos, de fato, não atendem às melhores práticas de eficiência. A licitação de mão-de-obra traz dificuldades em relação à fiscalização das horas efetivamente trabalhadas. Já em relação à aquisição das peças, torna-se impossível prever o tempo de desgaste da maioria dos componentes de um veículo, portanto, temos que em certa medida o legislador tomou uma decisão adequada ante os desafios de se licitar estes objetos e a imprevisibilidade destas contratações.

Ocorre que as facilidades podem vir acompanhadas de dissabores para os gestores e para os agentes que atuam nas licitações, especialmente quanto aos riscos do fracionamento indevido, ou seja, aquele que não encontra excludente no art. 75, § 7º da Lei 14.133/2021.

Vejamos alguns exemplos:

Exemplo 1

Suponhamos que ao longo do exercício o órgão tivesse que fazer uma dispensa de licitação no valor de R$ 60.000,00 para o conserto do motor de um ônibus escolar e, pouco tempo depois, tivesse que também consertar o motor de um caminhão, que custasse R$ 50.000,00, totalizando, assim, R$ 110.000,00.

Meses depois surge a necessidade de fazer a manutenção do motor de um veículo estimado em R$ 10.000,00.

Temos que em relação aos dois primeiros consertos estes poderiam se dar por dispensa de licitação, já que, embora individualmente tenham extrapolado o limite do art. 75, § 7º, não excederiam o limite do inciso I do mesmo artigo.

No entanto, para a manutenção do motor do último veículo a realização da licitação seria obrigatória.

Todavia, se a manutenção deste último veículo se enquadrasse no limite do art. 75, § 7º seria possível a dispensa sem que isso implicasse em fracionamento.

Exemplo 2

O veículo do órgão público necessita de um reparo e a mão-de-obra ficou estimada de R$ 7.000,00 e as peças em R$ 5.000,00, assim, o somatório seria de R$ 12.000,00. Neste exemplo, se com a nova contratação o órgão extrapolar o limite do art. 75, I, o processo licitatório torna-se obrigatório já que o art. 75, § 7º prevê um valor total por cada processo de dispensa para manutenção de veículos automotores que não poderá superar o valor de R$ 9.153,34, incluído o fornecimento de peças.

Exemplo 3

Ao longo do exercício foram realizados 5 procedimentos de dispensa de licitação para manutenção de veículos automotores com fornecimento de peças e cada um no valor de R$ 22.000,00. Neste caso não haveria fracionamento em se realizar várias outras dispensas de licitação desde que cada uma das novas dispensas estivesse dentro do limite do art. 75, § 7º da Lei 14.133/2021.

Assim, para fins de cautela em relação aos riscos de fracionamento a partir de dispensas de licitação para manutenção de veículos automotores, incluído o fornecimento de peças, entende-se que:

  1. A Administração poderá dispensar a realização de licitação para manutenção de veículos automotores de sua propriedade, incluído o fornecimento de peças independentemente do valor de cada processo desde que o somatório não ultrapasse o limite do art. 75, I da Lei 14.133/2021.
  2. As dispensas de pequeno valor para manutenção de veículos automotores com fornecimento de peças, ou seja, aquelas cujo valor individualmente não supere o limite do art. 75, § 7º, não se submetem à vedação do fracionamento.

Também devem ser adotados os cuidados necessários em relação às etapas para a elaboração dos procedimentos de dispensa, notadamente aqueles previstos no art. 72 da Lei 14.133/2021 e também aqueles previstos no regulamento a que está sujeito o órgão.

Links

[1] Vide em: https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=88637&pagina=2

[2] Valor atualizado pelo Decreto Federal n. 11.317/2022.

[3] Neste sentido o Processo 1119728 – Consulta. Rel. Cons. Cláudio Couto Terrão. Deliberado em 21/9/2022.